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Antigo 08-02-2009, 16:25
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Padrão Ferry Porsche




MEMÓRIAS DE FEUERBACHER WEG 48

A "minha" história de Ferry Porsche.
Ferry Porsche faz 100 anos e está bem vivo entre nós. E porque 2009 ano é assim um ano especial, resolvi contar aqui a "sua" estória. Não, claro, a sua história – essa têm que procurar nos livros da especialidade ou na wikipedia. Eu aqui apenas vou contar a minha estória da História dele. O que pode ser uma coisa boa, porque eu digo coisas que não se lêem nos livros da Porsche: tais como o facto de Ferry, quando era pequeno, ter umas orelhas que mais pareciam uns abanadores. Ou de andar armado com uma pistola com apenas 10 anos. E fumar na frente dos pais com 13 anos. Uma alegria!

Ferdinand Anton Ernst Porsche, o segundo filho de Ferdinand e Aloisia Porsche, nasceu a 19 de Setembro de 1909 em Wiener Neustadt (fica bem começar assim), praticamente nas traseiras da Austro-Daimler. Ferry Porsche não era alemão. Por causa da I Guerra Mundial, os Porsche ficaram Checoslovacos. Não faço grandes tensões em me perder por esta fase pueril de Ferry Porsche que inicialmente foi chamado de “Ferdy”. Da casa onde nasceu ninguém fala. Sabe-se lá porquê...mas era lindíssima e ficava numa Rua com o difícil nome de Pottendorferstrasse. Não é que a sua infância tenha sido um período pouco interessante...antes pelo contrário. Mas foi interessante principalmente para ele, que a viveu. Em pequeno, Ferry foi aquilo a que se pode chamar um miúdo afortunado. Um puto com sorte. O mega-sucesso de seu pai, Ferdinand Porsche, embora por pudor não seja de todo falado, conferiu-lhes um destaque na sociedade Alemã e Austríaca absolutamente fora de série. Todos queriam ser amigos dos Porsche, porque Porsche era sinónimo de dinheiro, poder, tecnologia, modernidade, adrenalina, velocidade. Ser amigo de um Porsche era uma porta aberta para se ter acesso a um turbilhão de emoções ao alcance...de praticamente ninguém! Embora não fossem ricos, os Porsche tinham veleiros, tinham lanchas de velocidade extrema e tinham carros, e tinham carros rápidos. Ser Porsche era ser cool.

Ferry, por isso, desde muito cedo que podia usufruir de regalias pouco comuns aos miúdos da sua idade: pequenas réplicas motorizadas à escala das verdadeiras, motas, bicicletas, etc. Ficou célebre o mini modelo, replica do Austro Daimler «Prince Henry» em 1920, miniatura especialmente concebida e construída por Ferdinand Porsche para a oferecer no Natal ao pequeno Ferry. E porque aquilo tinha um motor refrigerado a ar com dois cilindros e duas velocidades, Ferry fugia de casa sem ninguém saber e, à revelia do consentimento da família, inscrevia-se nas provas de corridas com o pequeno carrinho. Toda a gente achava imensa piada, e o atrevimento era até realizado com a cumplicidade da Policia local.

Nos anos 20 a Alemanha vai encontrar-se em grande recessão económica, embora a crise não afectará propriamente a família Porsche. Em 1922 partem para Estugarda. Ferdinand deixa a Austro-Daimler e assume funções de Director técnico na Daimler Motoren em Unterturkheim. A primeira casa dos Porsche em Estugarda vai ser o Hotel Marquardt. Vão ficar lá uma temporada antes de arrendarem uma pequena casa em Schoderstrasse. A vida de Ferry Porsche é a de um pequeno lorde instalado no Hotel.

Foto: Pottendorferstrasse a “Porsche Villa” onde Ferry nasceu em Wiener Neustadt:



Fotos: Os brinquedos de Ferry:





Foto: O Hotel Marquard. A primeira residência dos Porsche em Estugarda em 1922. O Edifício ainda existe, embora agora albergue cinemas e lojas comerciais:



Foto: Ferdinand Porsche vinha sempre almoçar ao Hotel com a família. Esta imagem é a da carta do Restaurante do Hotel naquela altura:




A LOCOMOTIVA DE FERRY

No dia 21 de Outubro de 1922 (embora ainda não totalmente concluída) é inaugurada em Estugarda a Estação Central de comboios que, ainda hoje, é conhecida por Hauptbahnhof. A Estação Central que é famosa pela sua torre (que sempre teve hasteada duas bandeiras: a nazi em tempo de guerra e a da Mercedes em tempo de paz), foi um marco na história da cidade.
Estávamos precisamente nesse mês de Outubro de 1922 e Ferdinand Porsche aproveita uma folga para ir ver in loco a nova estação. Porque o momento era de interesse cultural, fez-se acompanhar do seu filho Ferry, que contava 13 anos de idade. Pai e filho chegam à nova Estação e param em admiração. O Edifício é de uma imponência fora do vulgar, com traços a fazer lembrar a arquitectura imponente do sul da Europa, repleta de colunas em pedra. Ferdinand Porsche permanece completamente absorto na contemplação destas linhas de construção magnânimes.

Voltando a si, vira-se para Ferry e diz-lhe: anda daí ! E leva-o ao interior da Estação. Estacam na frente de uma locomotiva estacionada numa das primeiras linhas. Ferdinand Porsche era um admirador das locomotivas Inglesas. Sabia tudo sobre elas e coleccionava todos os artigos que encontrava sobre locomotivas. Explicou a Ferry a magnificência daquela engenharia. Ferry, muito franzino, permanecia mudo na frente daquele colosso de robustez. E pensava, impressionado, na complexidade daquele veículo de transporte de massas. E pensou para com os seus botões, quão afortunados serão aqueles que têm a sorte de viajar naquelas composições. A visão e o contacto com aquela locomotiva marcou-o. A sua robustez era impressionante e de certa forma ia de encontro à robustez da própria Estação que por sua vez impressionara o seu pai, Ferdinand Porsche.

E tanto o impressionara que Ferdinand vai pessoalmente procurar o Arquitecto que construíra a Hauptbahnhof.

Fotos: Hauptbahnhof, a Estação Central dos Caminhos de Ferro:





Foto: A locomotiva de Ferry:



PAUL BONATZ

Paul Michael Nikolaus Bonatz, mais conhecido como Professor Bonatz, foi um dos maiores arquitectos alemães da Escola de Estugarda. É dele (conjuntamente com Friedrich Eugen Scholer) a autoria do projecto de construção da referida Estação Central, Hauptbahnhof, considerada um dos principais monumentos do Estado de Baden-Württemberg. Ferdinand Porsche vai procurar o Professor e pedir-lhe, nada mais nada menos, que lhe construísse a futura casa da família Porsche: A PORSCHE VILLA.

Em Feuerbacherweg 48-50, na colina de Estugarda.

Ferdinand Porsche, que sempre foi um excelente desenhador, apareceu no gabinete de Bonatz já com uns esquiços da sua futura casa. A ideia, embora ligeiramente peregrina, era construir uma casa de inspiração do Colonialismo da Nova Inglaterra, muito em voga na América, mas muito pouco ou mesmo nada na Alemanha. A casa dos Porsche irá ser construída em blocos de cimento cobertos de estuque branco. Os telhados serão íngremes e assotados, já que vão abranger os quartos. Na frente o espaço não abunda e apenas albergará um pequeno logradouro composto por um pequeno lago e algumas estátuas. A casa, embora imponente é de traço simples. Vai ser a casa da família Porsche (Porsche Villa) mais carismática de todas, perdurando até aos dias de hoje a sua importância e o culto entre os seus membros. O Professor Bonatz auxiliado por Fritz Scholer vai transformar a Porsche Villa num Projecto de currículo, profundamente original, embora mantendo o respeito pela cultura tradicional associada à família Porsche. Ao lado da casa principal e entre a casa de hóspedes, Bonatz vai construir duas garagens com portadas brancas que, serão nada mais, nada menos, do que as garagens residenciais mais famosas da história da humanidade. Porquê? Porque estas duas pequeninas garagens, completamente exíguas de espaço, irão constituir a primeira oficina de Ferdinand Porsche, e é lá que vai nascer o protótipo do primeiro VolksWagen.
Um verdadeiro local de culto. Um local mágico na história da Porsche e que muito pouca gente liga, infelizmente. A casa vai ser estreada num dia 13, em Dezembro de 1923, sendo a primeira noite a de uma Sexta-feira. Toda a gente rogou a Ferdinand Porsche para se não mudar numa num dia 13 véspera de Sexta feira, mas ninguém sabia que esse era o seu n.º da sorte. A estada da família na casa, não foi, porém, levada a cabo de forma totalmente contínua. A família vai lá habitar os primeiros 5 anos (de 1923 a 192 e em seguida vai-se retirar, muito por culpa das raízes Austríacas e do percurso profissional de Ferdinand Porsche que em 1928 arranca com um projecto de trabalho para a austríaca Steyr.
O motivo foi a ruptura com a cúpula da Daimler Benz. Para quem não sabe, Ferdinand Porsche foi humilhado na Daimler Benz com um triste episódio, quando deixaram os carros que desenvolvia, ao relento durante a noite, para que não pegassem no dia seguinte. A Porsche Villa de Feuerbacherweg vai então ser alugada a Hans Nibel que, aliás, na altura era um quadro da recém fundida empresa – precisamente o substituto de Ferdinand. O mais caricato é que Ferdinand Porsche foge da Daimler Benz para a Steyr, mas vem a descobrir algum tempo depois que ambas preparavam uma fusão. Perante esse revés e profundamente irritado, Ferdinand Porsche regressa novamente a Stuttgart, e decide abrir a sua própria empresa, na célebre Kronenstrasse.
Enquanto não acabava o contrato de arrendamento com Nibel, a família Porsche instala-se na Schoderstrasse, também na colina de Feuerbach. O regresso à Porsche Villa vai acontecer em 1932 e a família vai lá permanecer até ao terrível ano de 1943, altura em que se irá se dar a fuga para Zell am See, na Austria, (até 1949) - e onde irá ser escrito o inesquecível capítulo da Porsche em Gmund. O regresso definitivo da família Porsche a Stuttgart, acabará por acontecer em 1949, lá permanecendo até aos dias de hoje.

Foto: Paul Bonatz, o Arquitecto da Estação e da Porsche Villa:



Fotos: Aqui há uns anos atrás, no meio de um molho de documentos pessoais da família Porsche que tive oportunidade de adquirir, vinha lá uma carta muito caricata. Como Ferdinand Porsche tinha ficado muito amigo do Professor Bonatz, um vizinho de Porsche escreve-lhe a pedir para ele meter uma cunha junto do Arquitecto com vista a conseguir construir uma capela mortuária num parque público de Heidelberg. Juntou uma planta e tudo:





Foto: Os desenhos do Projecto da Porsche Villa, em 1923-24 que deram entrada na Câmara de Estugarda e a nota de que foram provisoriamente aprovados em Maio de 1923:



Foto: Diversas imagens da Villa nas diferentes Estações do ano. De salientar que as traseiras da casa era o local predilecto para a família Porsche se reunir com os amigos:



Foto: o pequeno Ferry na frente da casa com uma das suas bicicletas motorizadas:



Foto: A casa fotografada em 1935:



Foto: Ferdinand, Ferry e a sua tia Anna, irmã de Ferdinand, posam ao lado do Type 30 da Steyr. Corria o ano de 1929:



Fotos: “Regresso” ao presente: Feuerbacherweg vista actualmente através do “Virtual Earth”. Na imagem das traseiras da casa, percebe-se que ainda é escolhida como zona de convívio:






Foto: O município de Estugarda faz-lhe a devida referência:




A PRIMEIRA "FÁBRICA" DOS PORSCHE

Mal entra em casa em 1932, Ferdinand Porsche com a ajuda do seu filho Ferry (que contava já 33 anos), torna a dar vida às duas portas brancas das garagens de Feuerbacherweg. Ferdinand tinha criado a sua própria empresa, a tal de nome esquisito: "Porsche Konstruktionsburo fur Motoren-Fahrzeug-Luftfahrzeug und Wasserfahrzeugbau" mas, na Kronenstrasse apenas lhe era permitido usufruir de instalações para gabinetes técnicos de engenharia e de desenho. Instalações para passar da teoria à prática não existiam. A oficina improvisada dos Porsche vai assim renascer das cinzas, muito por culpa de Fritz von Falkenhayn, Director Geral da NSU que, perante o declínio do mercado das motocicletas, encomenda a Ferdinand a criação de um pequeno automóvel, que ficou conhecido como o Type 32. Os 3 protótipos do pequeno automóvel, foram montados de Agosto a Dezembro de 1933 nas pequenas garagens da Porsche Villa. Os motores de 1.5 litros vieram da fábrica da NSU em Neckarsulm (arredores de Estugarda) e as carrocerias da empresa Reutter. Destes três protótipos do NSU 32, apenas um sobreviveu à guerra, escondido num armazém em Friedrichsruh, Öhringen, também nos arredores de Stuttgart e está hoje orgulhosamente exposto no museu da VolksWagen. Mas, esta linha de montagem caseira, iria assistir ainda à criação de outras obras primas da história do automóvel, como foi o caso dos protótipos do Type 12 comissionado pela empresa Zündapp.
1932, foi assim um ano marcado por intensivo trabalho na Porsche Villa, construindo-se automóveis que ficaram conhecidos por terem sido os verdadeiros percursores do Volkswagen Carocha. Por razões que aqui não interessam, nem a NSU, nem a Zündapp, tiveram condições de levar por diante a produção destes pequenos automóveis familiares. Em Janeiro de 1933 Adolf Hitler torna-se Chanceller Alemão. Arrepiando caminho, escolhido Ferdinand Porsche como o desenhador do carro do povo (em detrimento de Joseph Ganz e Edmund Rumpler, que eram Judeus), Ferdinand Porsche vai iniciar em 1935, nova "linha de montagem" nas pequeninas garagens de Feuerbacherweg, desta vez, para construir três protótipos do Volkswagen: o célebre Type 60. Usando apenas 2 tornos, uma prensa e uma máquina fresadora, auxiliado por 12 mecânicos, Ferdinand Porsche montou 2 protótipos, um aberto e um fechado. Seguem-se mais três protótipos, designados como a série V (v1, v2 e v3), que também irão ficar célebres, principalmente pelo facto de, após terem sido entregues às autoridades alemãs, vão ser submetidos a duríssimos testes orientados pelo exército alemão. Vai ser precisamente o nosso Ferry, a pessoa que irá ficar à frente dos ensaios aos protótipos V3, contratado pela Reichsverband der Automobilindustrie. Entre 12 de Outubro e 22 de Dezembro de 1936, pelas estradas da Floresta Negra de Estugarda. Ferry usava basicamente 3 percursos:

PERCURSO 1 - Stuttgart - Karlsruhe, Bruchsal - Darmstadt - Frankfurt - Bad Nauheim - Stuttgart.

PERCURSO 2 - Stuttgart - Pforzheim - Baden-Baden - Offenburg - Kneibis - Freudenstadt – Stuttgart.

PERCURSO 3 - Feuerbacherweg - Dobel, Baden-Baden, Offenburg, Biberach, Harmersbachtal, Oppenau, Alexanderschanze, Freudenstadt, Horb, Tübingen - Stuttgart.


Ferry Porsche começava a ter um papel preponderante na família, e estava em plena ascenção tanto pessoal como profissional. Quando casou em 10 de janeiro de 1935 com Dorothea Reitz, a filha da proprietária do Café Lehrenkraus, em Estugarda, Ferdinand Porsche vai-lhe oferecer um piso inteiro da Porsche Villa. E é lá que pouco tempo depois, irá nascer Ferdinand Alexander Porsche, que ficará conhecido como Butzi.

Foto: Ferry numa noite de boémia animação no Café Lehrenkraus:



Foto: O Type 12:



Foto: 1935. O chassis do type 60 estirado na frente da casa:



Foto: o VolksWagen 30 e uma gravura bem ilustrativa do reboliço da vida nas garagens:



Fotos: Ferry na linha de montagem caseira de Feuerbacherweg e na Floresta Negra em testes:





Foto: a Porsche Villa de Estugarda viu passa por ela todos os carros e mais alguns. Ao longo de décadas, não houve um modelo da Porsche que por ali não passasse. Aqui ficam alguns exemplos, a começar pelo Type 64 que agora está na moda no novo Museu:



Foto: Três gerações, três automóveis, o mesmo local. Ferdinand com o seu 356 oferecido pelo filho; Ferry com o seu cão, e Wolfgang (o pequeno “wolfie”) com o protótipo do 356 (k45-286) junto às garagens:



Foto: um momento “mágico” na história da Porsche e da Porsche Villa. No dia 19 de Setembro de 1984, no dia em que Ferry completava 75 anos, toda a “cúpula” da Porsche, AG se deslocou a Feuerbacherweg para pessoalmente lhe entregarem o Porsche Type 942 Concept. O Type 942 era um concept de um 928 “break” e foi desenvolvido secretamente em Weissach, sem o próprio Ferry Porsche saber, já que seria uma surpresa para os seus anos. O carro era verde azeitona e muito avançado para a época: tinha telefone, computador de bordo, radar, um ultra potente sistema stereo Blaupunkt ainda não comercializado. A fotografia para a posteridade foi tirada em frente das garagens:



Foto: Ferry com um 993 à esquerda. Uma das raras imagens em que se vê a porta da garagem aberta. Pode-se ver na parede um enorme radiador de aquecimento central para que os carros não “sofram” no inverno:



Foto: esporadica e excepcionalmente, é permitida a entrada a pessoas estranhas à família para uma passagem pelo solo sagrado. A qui fica um exemplo de um pequeno grupo de afortunados:




1943 – O APOCALIPSE ALI À PORTA

"A luz fraca das nuas lâmpadas eléctricas, produziam um brilho amarelo que se fundia nos miseráveis seres humanos, cujas expressões retratavam todo o tipo de emoções desde o ódio carrancudo, até à mais torpe resignação. O cheiro do cimento húmido impunha-se ao odor acre do tabaco que queimava como uma velha corda. Ocasionalmente uma aragem a sucedâneo de café quente; o fedor dos bebés indefesos, cujas fraldas desesperavam por atenção – o impacto do sofrimento humano ainda muito longe do seu auge – todas estas coisas estavam presentes, todas como se fossem reais, e, ainda assim, duma forma tão súbita e surpreendente como um corte afiado de uma lâmina de barbear. E depois, havia os duros, estreitos, bancos de ripas; os ventiladores atrás das grelhas colocados no cimo das paredes lutando numa batalha perdida para tentar circular uma réstia de ar fresco e levar dali para fora os cheiros dominantes de suor e medo, constantemente regenerados por uma massa de pessoas indefesas". - palavras de Ferry Porsche para descrever a noite que passou num bunker.

26 DE NOVEMBRO DE 1943

443 Lancasters, 7 Mosquitos, 157 Halifaxes levantam voo rumo a Berlin e a Estugarda. Há muito que os Pathfinders (os aviões de reconhecimento que fotografavam o terreno) tinham a cartografia de Estugarda bem documentada. A fábrica da Mercedes, por ex, estava transformada num estaleiro da aviação nazi. A nuvem densa formada pelas centenas de aviões das forças aliadas, descolou rumo ao Norte de França, até Frankfurt e dividiu-se rumo a Berlin e a Estugarda.
Não estava ninguém em Feuerbacherweg. Toda a família Porsche estava já refugiada em Zell Am See, na Áustria. Toda, à excepção de Ferdinand e Ferry Porsche que permaneciam, teimosamente, em Estugarda.
Era já hora de jantar, mas Ferdinand e Ferry Porsche tinham estado a trabalhar. Passavam descontraídos na frente de Hauptbahnhof (a Estação dos caminhos de ferro) quando o alarme soou. A noite aparentemente calma da cidade ficou subitamente marcada por uma correria desorientada de pessoas que, sem nada dizerem, cruzavam-se com destinos diferentes rumo a um qualquer improvisado abrigo. O alarme era incessante e sobressaltava. Pressentia-se o perigo, e o ataque estava eminente. Stuttgart ia ser bombardeada.

(aparte: aqui há uns anos atrás encontrava-me eu em Londres, coincidentemente, por altura dos festejos dos 50 anos do V-day (victory day). Numa noite, a Câmara de Londres fez uma recriação do Blitz, para que todos aqueles que não o tinham vivido pudessem ter uma noção do que tinha sido. Caminhava eu à noite ao lado do Hyde Park e de repente começo a ouvir umas sirenes lancinantes (eram as sirenes de aviso de um ataque da Luftwaffe). As sirenes ecoavam pela cidade toda. Uma coisa arrepiante. Como eu não contava, nem sabia o que estava a acontecer, entrei em pânico. Era um som completamente angustiante. Então, passado um par de minutos, e ao mesmo tempo, ligaram-se no Hyde Park centenas de focos da 2.ª Guerra Mundial, em direcção ao céu, como se estivessem à procura dos esquadrões de aviões alemães. Indescritível. Por mais anos que viva não consigo esquecer aquela sensação de arrepio que me percorreu a espinha. Imaginei, muito facilmente, o puro e genuíno pavor que terá sido sentido na altura)

[youtube:i28cidal]http://www.youtube.com/watch?v=9i1QAtET0ok[/youtube:i28cidal]


Ferdinand e Ferry Porsche desataram a correr pela rua fora. O Professor já com idade considerável, fazia-o a muito custo. Entraram no Mittlerer Schlossgarten, um parque natural bem no Centro de Stuttgart e mesmo à beira da Estação. O Parque estava escuro, sem qualquer luz e demorou a atravessar. A decisão de ambos era a de ir para casa, rumo à colina que ficava a apenas 6 km do Centro. Mas o ataque precipitou-se. Uma chuva torrencial de bombas abateu-se pela cidade. Os Porsche viram-se obrigados a procurarem abrigo num bunker especialmente concebido para protecção dos cidadãos civis, aquando o ataque dos aviões. Os refúgios de Estugarda eram quase na sua totalidade Winkeltürme (torres Winkel), chamados assim por terem sido inventados por Leo Winkel em 1934. Eram uns cones de betão, geralmente colocados em sítios estratégicos, como eram as fábricas ou as estações de comboio. O que nos estamos a referir ficava na área de Feuerbach.
Ferdinand Porsche não abriu a boca para dizer uma palavra. Sentado no meio do povo (o tal Volk) para quem ele iria construir um automóvel. Tremia-se de medo à espera da morte porque os próprios cones onde estavam abrigados eram perecíveis. Uma bomba em cheio e seria o fim. Felizmente para nós, tal não aconteceu. Soado o alarme do regresso da bonança, Ferdinand e Ferry caminharam mudos rumo a casa, angustiados por pensarem que não a iriam encontrar. A devastação aleatória da sorte das bombas colocava Stuttgart no mapa da destruição massiva. A sombra da Villa foi avistada ao longe com alívio: estava de pé. Porém, mal chegaram perto, constataram que estava severamente afectada. Por todo o lado se encontravam espalhadas telhas, vidros e enormes pedaços de estuque. A casa dos Porsche tinha sido atingida num fogo cruzado com uma casa vizinha que tinha estrategicamente servido para instalar baterias anti-aéreas, em Killesberg, no lado norte da colina. Um batalhão alemão armados com canhões de 88 e 105 especialmente afectos ao disparo de aviões. Não havia luz e a estada dos Porsche na Villa era feita com recurso à luz das velas.

Na invernosa manhã seguinte, Ferry acorda cedo e dirige-se ao Centro para ver os estragos da cidade à luz do dia. O panorama é a todos os níveis deprimente. A certa altura, à semelhança da ocasião proporcionada na noite anterior, resolve refugiar-se no Mittlerer Schlossgarten, passeando-se num jardim deserto, triste e votado ao abandono. E eis senão quando, sentado num monte de pedras do chão, Ferry depara-se com uma criança sozinha. O miúdo estava sujo, mal vestido, e estava triste. Deveria ter uns 12 ou 13 anos. Se calhar menos.



Ferry, surpreendido com aquele "quadro", aproxima-se e pergunta-lhe:
- olhá lá rapaz, o que fazes aqui sozinho?

O miúdo explicou-lhe que costumava brincar no parque, mas que agora, com os bombardeamentos, mais ninguém aparecia, não tinha amigos nem ninguém para lhe fazer companhia nas brincadeiras. Ferry sentiu um nó na garganta. Lembrava-se bem do quanto tinha sido feliz naquela idade, e da sorte que tinha tido com tantos brinquedos, bicicletas e carrinhos.
Deu a mão ao miúdo e disse-lhe: anda, vou-te mostrar uma coisa. E levou-o à Estação dos Caminhos de Ferro, procurou uma locomotiva e perdeu-se a explicar-lhe o seu funcionamento e o modo fantástico como o homem conseguia colocar aquele monstro gigante em andamento. O miúdo, ouviu fascinado aquele relato. No final, muito sério, virou-se para Ferry Porsche e perguntou-lhe: não se pode levar uma locomotiva destas para o parque? De certeza que ia voltar a ter amigos para brincar! Ferry sorriu. Não havia nada mais genuíno do que o sonho de uma criança. E respondeu-lhe: grande ideia que tu tiveste. Talvez um dia...quem sabe.

Foto: o bunker:



Foto: as “Flak” em acção. Ordem para abater os aviões da RAF:



Foto: 1945. Estugarda e quase toda a Alemanha, devastadas:




AGOSTO DE 1960 – A PORSCHE LOK



Karl Friedrich, sentado na mesa da cozinha a tomar o pequeno almoço antes de iniciar uma nova jornada de trabalho numa famosa correctora alemã, segura um copo de leite colado aos lábios sem beber. Distraído, sorri de orelha a orelha, perante a minúscula notícia de rodapé do seu jornal diário "Stuttgarter-Zeitung". Dobrada a página e chegada aos olhos, podia-se ler o título: "Uma locomotiva no parque".
A sua boa memória de jovem de 30 anos, trouxe-lhe a viva recordação daquela sombria e distante manhã em que, na sua juventude, se cruzou com um simpático senhor de sobretudo. Será possível? Interroga-se? Seria...ele?
O pequeno título do rodapé do jornal, remetia para uma notícia da secção regional: "Kölner Rheinpark inaugura hoje a Locomotiva Porsche", podia ler-se no sub-título. A história era fascinante e anunciava a inauguração de uma linha de comboio de parque. A locomotiva era da Porsche, baseada no motor do 356 e destinava-se a locomover um comboio de crianças. Henry Escher (Henry Escher KG. Dortmund e Heinz Grandmontagne (Saar Messe GmbH Saarbrücken) foram os o fundadores.
Karl Friedrich pousa o jornal, reflecte por uns momentos e anuncia à mulher: vai buscar as crianças, partimos ainda hoje para Colónia.
O Parque era composto por uma linha férrea de cerca de 2,5 Km e 3 estações, nela circulando 3 comboios, um azul, um vermelho e um amarelo.
O fabricante das carruagens era a Sollinger Hütte Uslar in Solling. O motor era fornecido pela Porsche, e era o mesmo que foi desenvolvido para as embarcações, derivado do Type 356, com 1600 cc e 46 cv.
A locomotiva da Porsche encheu de alegria meio milhão de crianças por ano. Teve acidentes, descarrilou, mas correu mundo.



Foto: a lindíssima locomotiva Porsche: “Um estranho 356”:



Foto: um dos primeiros protótipos da Porsche Lok, em exibição na Exposição PROTOTYP em Hamburgo:



Fotos: dois momentos inesquecíveis na vida da pequena locomotiva: a voar pendurada por uns cabos no jardim Zoológico de Berlin, e a levar a alegria às crianças de Novan Yorque. A Porsche Lok passeou o seu charme pelo Central Park:







O ADEUS A FEUERBACHERWEG

A Porsche Villa viu morrer os seus dois mais importantes inquilinos. Quer o pai Ferdinand, quer o filho Ferry, deixaram bem clara, a expressa vontade de morrer em Feuerbacher Weg. Ambos vão lá viver os seus últimos dias, embora Ferdinand falecendo a 30 de Janeiro de1951 no Hospital Marien de Estugarda e Ferry, por sua vez, a 27 de Março de1998 em Zell am See, na Austria, encontrando-se ambos sepultados na capela "Schüttgut" do jardim da casa. Ferry, na esteira de seu pai, vai coleccionar títulos e comendas, num reconhecimento generalizado das suas qualidades: "Großen Goldenen Ehrenzeichen" pela Áustria em 1975, "Großen Bundesverdienstkreuz mit Stern" pela Alemanha em 1979 "Medalha de cidadão da cidade de Estugarda" em 1989 e "libertador da cidade" por Zell am See em 1981 e Wiener Neustadt. A sua terra natal em 1994.

A locomotiva da Porsche é, acima de tudo um símbolo. Um símbolo da força e do poder que o nome carrega. É um símbolo da perseverança da Porsche rumo ao futuro. Um futuro assente em sólidos carris. E quando se olha para a locomotiva da Porsche, percebemos que por trás daquela máquina rude, estão décadas de genialidade.
Nos Panzers, nas armas, nas bombas ou nas corridas; nos barcos, nos aviões ou nos carros; na Guerra ou na Paz, na alegria ou na tristeza, recebemos-te e ser-te-emos fieis. É de nossa livre vontade e de todo o coração que vos amamos e respeitamos todos os dias na nossa vida. A Porsche sempre teve gente de uma magnanimidade excepcional. Na saúde e na doença. Gente que vive em nós, sem que a morte nos separe. Gente como Ferry Porsche.



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  #2  
Antigo 08-02-2009, 17:17
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Padrão Re: Ferry Porsche



Já é lugar comum, sem palavras e sem fôlego
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  #3  
Antigo 08-02-2009, 18:57
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Diácono Luís Diácono Luís está offline
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Padrão Re: Ferry Porsche

Antes de tudo, emocionante este tópico...

a história do miúdo e da locomoliva é algo de comovente...

Porque agradecer estes escritos se tornou tão comum como dizer "bom-dia", esta é última vez que o faço.

A partir de hoje a palavra "obrigado" é muito curta para tamanha qualidade...
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Não há idades… porque todos somos meninos perante e beleza e a sedução de um Porsche
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  #4  
Antigo 08-02-2009, 19:45
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Padrão Re: Ferry Porsche

Já percebi que foi uma noitada até ás 7 da manhã!

E o curioso é que cada vez que sai um post histórico deste tipo, parece ser sempre o melhor feito até agora.De facto não há palavras!

Este tem ainda a curiosidade de para mim, 95% das fotos que o ilustram serem desconhecidas.

Isto são cá uns arquivos!

Mais uma "cadeira" e uma noite descansada, que amanhã é dia de trabalho.

Abraço.

MRS

PS-Trabalho feito para 19 de Setembro!
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  #5  
Antigo 08-02-2009, 19:58
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Padrão Re: Ferry Porsche

a historia da locomotica é fantastica..
mais um excelente topico do zico. obrigado!
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  #6  
Antigo 08-02-2009, 21:24
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Padrão Re: Ferry Porsche

Graças por termos no lehrenkrauscafé "gente de uma magnanimidade excepcional. Gente como" o ZICO.

Desculpa o (ab)uso das tuas palavras mas, tal como os restantes, já não sei mais como agradecer por estes posts
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“The 3.2 litre engine is the best that Porsche ever made” Walter Röhrl
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  #7  
Antigo 08-02-2009, 22:16
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Padrão Re: Ferry Porsche

impressionante a informação...

obrigado Zico
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  #8  
Antigo 09-02-2009, 0:50
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Padrão Re: Ferry Porsche

Mais um tópico admirável.

Sabendo que fazes isto de forma desinteressada, espero que venhas a ter o retorno merecido, esperado ou não. Tu mereces....

Definitivamente.... podes dizer que és descomprometido, mas vives em união de facto com a Porsche. :P
__________________
Something new is about to happen!!!!!!
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  #9  
Antigo 09-02-2009, 11:52
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Famous Cock Famous Cock está offline
Membro Carioca
 
Data de Entrada: Oct 2008
Mensagens: 133
Padrão Re: Ferry Porsche

Fantástico!!!
Documentação Impressionante até os desenhos do Projecto da Porsche Villa, em 1923-24 que deram entrada na Câmara de Estugarda...meus deus nem imaginam como é dificil arranjar qualquer documento desse género em portugal...
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  #10  
Antigo 09-02-2009, 12:19
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tex tex está offline
Membro Cappuccino
 
Data de Entrada: Nov 2008
Local: Lisboa
Mensagens: 4.315
Padrão Re: Ferry Porsche

Mais um excelente post que o Zico já nos habituou e que faz com que enriqueça a minha cultura Porsche.
__________________
Abraço
TEX
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