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Antigo 15-03-2014, 16:01
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Padrão Ainda Ferdinand Porsche - O Proscrito


AINDA FERDINAND PORSCHE – O PROSCRITO

Aqui há uns tempos atrás tinha prometido abrir um tópico, coisa que não tenho feito ultimamente. Depois aconteceu uma coisa que nunca me tinha acontecido: em Janeiro postei este tópico por engano numa zona privada do fórum. Depois, a magnífica reportagem da exposição “Ferdinand Porsche, The Heritage – from electric to electric” com que muitos de vocês nos brindaram, fizeram-me esquecer este texto.
A exposição do Ferdinand Porsche foi de facto um bonito exemplo do esforço de uma minoria privada que vai teimando em relembrar a figura de Ferdinand Porsche.
Ainda assim, não tenhamos ilusões, este homem vai desaparecer. É triste, mas a difícil realidade económica e o modelo capitalista que ditam as regras do comércio actual, não se compadecem com ideias, com pessoas ou com “curiosidades” da História.
É óbvia a estratégia do corte com o passado para progredir no futuro (já diziam os antigos). Muito mais quando esse passado esteve confundido com uma das mais negras páginas da história da humanidade, que foi a que foi escrita pelos Nazis.


2 – Sempre com as mãos nos bolsos.

Por outro lado, Ferdinand Porsche é um velhote sem interesse. Á medida que o tempo passa a memória da sua pessoa vai ficando cada vez mais ténue. Dentro de 100 anos ninguém vai saber quem ele foi. O que não tem mal se for esse o preço a pagar pelo sucesso de vendas de um Macan RS. Basta ver o papel activo que o Museu da Porsche – instituição privilegiada para patrocinar o culto do seu Fundador – tem tido na condenação do senhor ao ostracismo. Porque não vemos no Museu uma sua imagem, porque não vemos os seus desenhos ou os seus objectos pessoais?
E já nem falo, sequer, nas outras mentes brilhantes ou dedicadas da Porsche, que desde o ano de 1931, injustamente nunca foram institucionalmente reconhecidas (encabeçada por Erwin Komenda).


Contra essa corrente, trago aqui a recordação de dois locais pouco divulgados, mas que tiveram um significado grande na vida de Ferdinand Porsche. São locais distintos (um fica na Alemanha e outro na Áustria) mas ambos foram determinantes na sua vida por diferentes razões.


A PORSCHEHÜTTE – NO COVIL DO LOBO

Quando no final dos anos 30 do século XX Hitler decidiu incumbir Ferdinand Porsche da construção do Volkswagen, cedo se percebeu que seria necessário mais do que um mero reduto industrial para o fazer. O projecto era tão megalómano e os recursos de Hitler eram tão vastos, que havia que redimensionar a vontade à escala e dimensão do objectivo. Seria preciso disponibilizar-se uma região inteira para se inventar uma nova cidade: a cidade dos Volkswagens.
Em 1937, Bodo Lafferentz e Jakob Werlin, dois importantes Oficiais das SS, juntamente com Ferdinand Porsche ficam à frente dos destinos da GEZUVORGesellschaft zur Vorbereitung des Deutschen Volkswagens mbH” (uma Associação para preparação da criação e desenvolvimento do pequeno carro Alemão).

Incumbidos pelo Reich, destacam uma equipa especialmente dotada de um Junkers Ju 52 (avião militar) com instruções para sobrevoar a Alemanha de uma ponta à outra. O propósito era encontrar um local ideal para a instalação de uma gigantesca estrutura industrial.
Depois de muita inspecção e debate, a escolha recaiu na zona de bosques de Fallersleben, na Baixa Saxónia. Naquele sítio, muito bem localizado estrategicamente (zona central banhada pelo Canal Midland) havia apenas um velho Castelo datado do ano de 1300: um castelo chamado “Wolfsburg” – o Castelo do Lobo.

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3 – O Castelo de Wolfsburg.

Ora, acontece que tal local era propriedade de um Conde, Günther Graf von der Schulenburg oriundo de uma aristocracia ancestral e a última coisa que ele queria era ver-se despojado do seu passado aristocrata e dos seus domínios. Que não eram de pouca monta. Implicava abdicar do Castelo e de 2000 hectares de bosque e de campos de cultivo.
Revoltado, o Conde vai encetar em Berlim contactos junto das mais altas patentes do Estado, na esperança de inviabilizar a expropriação dos seus bens. Esforço que no final vai resultar infrutífero.



4 - Á esquerda o escudo de Armas da família de Schulenburg que representa três garras que defendem as relhas de charrua sobre o escudo. Á direita os símbolos da cidade de Wolfsburgo.

A cidade da Volkswagen vai mesmo nascer em 1938, ocupando toda aquela região. É uma cidade criada a partir do zero, toda desenhada para maximizar a produção do automóvel, ao mesmo tempo que acomodaria todos os seus milhares de trabalhadores (chegaram a ser mais de 17.000 – uma franja deles forçados). Foi baptizada de “Stadt des KdF-Wagen” (Cidade dos Carros KdF).
O Conde de Schulenburg vai receber 9 milhões de Marcos pelas terras, mas diz-se que se apresentou na inauguração da fábrica a 26 de Maio de 1938 com um chapéu Judeu na cabeça.
A cidade construída era impressionante, com vias e infra-estruturas imponentes, mas o que nos interessa saber é onde nela se encaixou o pai de toda aquela revolução da Industria automóvel.


5 - A fábrica como principal edifício.

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6 - Pormenor de parte da cidade dos KdF.


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7 – 1938. Com a fábrica ainda em construção ao fundo, podemos ver Ferdinand Porsche ao volante de uma das locomotivas de transporte.


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8 - Prospecto do famoso carocha. Hitler vai precipitar-se e chamar-lhe Kdf (em referência ao organismo do aparelho nazi) apanhando Ferdinand Porsche totalmente de surpresa. Porsche abominava o nome pelo facto de ter conotações políticas e achava-o totalmente descabido. Mais tarde o nome KdF vai cair e ficar Volkswagen.


Ferdinand Porsche vivia e trabalhava em Estugarda a mais de 500 km de distância da Cidade dos KdF. Como tal, estava impedido de se deslocar diariamente, ou pelo menos regularmente àquela região. O que era um problema, pois era ele o grande responsável pelo desenvolvimento do Volkswagen. A solução encontrada passou pela construção de uma casa com escritório onde ele pudesse instalar-se a dormir e a trabalhar. A pedido do Professor, amante da caça, a mesma teria que ser localizada fora da confusão do perímetro industrial e isolada num local calmo, de preferência com natureza aprazível. O sítio eleito foi a colina florestal de Klieversberg, a sudoeste do centro da cidade. Era sossegada como Porsche exigiu e ainda por cima tinha uma vista privilegiada sobre a fábrica. Saudosista, o seu desejo expresso foi o de recriar o ambiente da sua antiga casa de montanha de Wiener Neustadt, na Áustria.

A casa era simples e toda ela feita em madeira. Ferdinand Porsche vai lá passar solitárias e difíceis temporadas, longe da mulher e dos seus filhos. Para passar o tempo percorria a floresta e conversava com os guardas florestais, e muitas vezes recebia importantes amigos do Partido Nacional Socialista, com eles convivendo e confraternizando socialmente. Fazia longas caminhadas e adorava ficar a contemplar de longe o bulício da fábrica dos KdF.
Para a história, o Bungalow vai ficar conhecido como “PORSCHEHÜTTE”, qualquer coisa como a “cabana do Porsche”.


9 - 1938. Construção da Cabana do Porsche por trabalhadores da “Stadt des KdF-Wagen”.





10 - Documento raro na posse dos correios alemães, donde consta o carimbo usado por Ferdinand Porsche na Porschehütte. Nele podemos ler: “Dr. Ing. H. c. Porsche K. G. – BÜRO FALLERSLEBEN” (Escritório de Fallersleben).


Com a guerra a fábrica da Volkswagen suspendeu a produção dos automóveis e virou-se forçosamente para a de veículos e artefactos bélicos (com destaque para o Kubelwagen e o Schwimmwagen), o que complicou severamente a vida de Ferdinand Porsche, que teve de intensificar a sua presença e o seu trabalho na fábrica, já que era ele também quem dirigia essa diversidade de Projectos. Foram tempos muito difíceis que Ferdinand Porsche passou, e a sua passagem pela Stadt des KdF-Wagen vai marcá-lo profundamente.
O fim da guerra deixou a fábrica e a cidade severamente destruídas, arrasadas a 20 e a 29 de Junho de 1944 por mais de 90 bombardeiros. Ferdinand Porsche foi encontrado prostrado no chão, a chorar.

As instalações são ocupadas pelos aliados; depois renovadas e mais tarde modernizadas e adaptadas ao pós-guerra, renascendo numa moderna fábrica que será comandada pelo famoso engenheiro alemão Heinrich Nordhoff. E dizendo adeus à referência “KdF”, a cidade foi rebaptizada de Wolfsburg em homenagem ao antigo Castelo do Lobo.


11 - “Wolfsburg Motor Works” - o primeiro sinal colocado na fábrica do pós-guerra com a intervenção dos ingleses. Era o fim da era nazi da VW.

Em 29 de Julho 1945 Ferdinand Porsche, Anton Piëch e outros funcionários, foram presos, acusados de alegados desvio de dinheiro e de Projectos da fábrica da Volkswagen. Como se não bastasse, tinham sido encontrados dois misteriosos cadáveres nas imediações da Porschehütte.
Os anos passam. Tudo muda, mas a cabana do Porsche fica esquecida no cimo do monte.
O que foi um crime, já que aquele local teve um significado profundo na história dos Porsche. Foi ali que Ferdinand Porsche desenvolveu muitos dos seus únicos, fascinantes e geniais projectos – muitos deles naturalmente de natureza bélica - como o Panther 43, o Porsche Typ 180, Typ 101 ou Typ 205 (referentes aos tanques de guerra) para referir apenas alguns.
Ironicamente, muito betão foi derrubado, mas a pequena cabana de madeira onde morou o Professor Engenheiro manteve-se estoicamente intacta e preservada até aos dias de hoje.

Ao longo destes anos só vi por uma única vez (na internet) registos de uma visita organizada por um pequeno grupo de entusiastas em visita de honra a Ferdinand Porsche. O que se compreende já que a sua existência e a sua localização não têm qualquer divulgação.

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12 – A cabana do Porsche na actualidade.


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13 – Pormenores da casa. Na fotografia de baixo à esquerda, podemos ver a vista que existe no local sobre a cidade e a fábrica da Volkswagen.


Em 1982 a cabana foi adoptada por um grupo de artistas independentes e numa iniciativa cultural privada foi transformada numa Escola de Artes, organizando cursos e exposições. Ao longo dos tempos foi-se degradando, e a determinada altura foi alvo de um Processo judicial cujo objecto versava a questão dos direitos sobre a sua propriedade. Complicações burocráticas, que foram agravadas até ao surgimento milagroso de Ferdinand Piëch, neto de Ferdinand Porsche.

É que Piëch, nascido em 1937, passou longos verões da sua infância na Porschehütte. Na sua auto-biografia, Piëch dedica precisamente um capítulo das suas memórias a descrever o fascínio que tinha pela cabana, bem como de percorrer a fábrica com o seu Avô. Como qualquer criança, maravilhava-se com tudo o que via, desde as reparações dos aviões até às viagens que fazia no comboio de transportes internos de mercadoria.
E através da Volksvagen, AG, Piëch decidiu-se agora a adquirir a cabana para honrar o nome do seu Avô. Foi um acordo recentemente celebrado com a Câmara Municipal, que para além da instalação da Escola de Arte numa nova cabana construída ao seu lado, passou pelo pagamento da quantia de 100.000,00 € (uma pechincha) para reaver a original Porschehütte.
Agora, a muito feliz ideia de Ferdinand Piëch é restaurar e preservar a cabana, e colocá-la sob responsabilidade da Volkswagen, muito provavelmente para transformá-la num local aberto ao público e a visitar no futuro.


OS MIRADOUROS DE FERDINAND.

O outro sítio a que nos queremos referir fica num local completamente distinto, mais concretamente nos Alpes Austríacos. Como é do nosso conhecimento, com a Segunda Guerra Mundial os Porsche vão refugiar-se na Áustria, transferindo para Gmund, na Caríntia, o seu local de trabalho. É aqui que vai nascer o primeiro Porsche em 1948 (modelo 356). Ainda assim, o Professor via-se obrigado constantemente a viajar para a Alemanha (de Gmund e Zell am See a Estugarda são cerca de 500 km). Apesar da distância não ser muita, a verdade é que que se tinha que atravessar as montanhas em sinuosas estradas, o que fazia com que a viagem fosse relativamente penosa. E essa travessia era efectuada pelo famoso Grossglockner Hochalpenstrasse, que fica nada menos do que no ponto mais alto daquele país.

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14 – O berço da Porsche - a Áustria no seu melhor.

A estrada de Grossglockner é uma obra prima da engenharia, da responsabilidade do génio de Franz Wallack. Foi matematicamente traçada com a largura de 3 e 5 metros e feita para que os troços sejam pré-visionados pelo condutor. Para se ter uma ideia da dimensão do Grossglockner, o seu custo em 1936 foi calculado em 53 milhões de Euros, nos dias de hoje.
Foi usada para corridas, para recordes e foi o berço de ensaios quer da Volkswagen quer da Porsche.
Nele se encontra o não menos famoso Hochtor Tunnel que, como o nome indica, é um túnel que foi construído em cima de uma das mais antigas vias pedrestes existentes na terra, com mais de 4000 anos e onde colocado um lindíssimo pórtico em pedra onde se pode ler a inscrição: “In te, Domine, speravi” que significa “em ti Senhor, eu confio” e era o mote do Papa Benedicto XV, frase retirada de um salmo da Bíblia.
O sítio mete respeito e nos dias de mau tempo mete medo.


Havia no entanto neste itinerário um local especial - local que se transformou no sítio predilecto de Ferdinand Porsche, de paragem obrigatória sempre que lá passava ao longo de muitos anos. Era uma espécie de refúgio, onde podia contemplar a paisagem e alhear-se de todos os problemas que tinha na sua vida agitada. A paragem era assim inevitável, fosse o seu chauffeur Josef Goldinger a conduzir, o seu filho Ferry, o seu afilhado Ghislaine, ou até ele próprio.

Esse lugar era o Miradouro junto ao Fuscher Törl.



15 – No Hochtor existem vários pontos de paragem com miradouro para a paisagem. Esta foto representa um desses locais na actualidade. É o Miradouro que se encontra à saída do túnel.

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16 – O mesmo local da fotografia anterior, mas recuamos no tempo e vemos Ferdinand Porsche em 1937 dentro de um VW30.

O Fuscher Törl era um memorial desenhado pelo Arquitecto Clemens Holzmeister e foi erigido em memória de todos os trabalhadores que morreram a construir aquela estrada. Como tal, o monumento foi colocado precisamente no sítio que melhor vista tem sobre o Grossglockner. E era aqui, nestes sítios ermos, que Ferdinand Porsche parava para meditar, encostado à cercadura em madeira…provavelmente para sossegar os fantasmas que o atormentavam…


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17 – O Fuscher Törl ao fundo e nas margens a cercadura em madeira do miradouro.


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18 – O mesmo local da fotografia anterior, mas recuamos no tempo e vemos Ferdinand Porsche em 1950.


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19 – Ferdinand Porsche no mesmo local, noutra altura.


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20 – Em cima o VW em testes em modo morcego, com as ópticas cobertas a couro para não reflectirem as luzes e serem identificados pelos aviões inimigos. Em baixo, no mesmo local, um 356 na actualidade.


22 – Um Porsche 356 ruma nos dias de hoje ao Fuscher Törl, que podemos ver na fotografia em cima, à esquerda.


23 – E, honradamente…estaciona junto às traves da cercadura do Miradouro, precisamente no sítio onde o Professor meditava.


Temos que aceitar que memórias simples e pessoais de alguém possam ser consideradas insignificantes e de pouco ou nenhum interesse para os dias conturbados de hoje. Na última entrevista que deu, perguntaram a Nadir Afonso qual tinha sido a maior revelação que lhe tinha sido dada pela vida - e a reposta dele foi seca: “a de que somos todos insignificantes”.

Porque nunca poderia fazê-lo melhor, remato com o relato feito por Saint-Loup sobre a visita de Ferdinand Porsche à fábrica da Volkswagen, depois da guerra, quatro meses antes de morrer. Merece mesmo ser lida.


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